sábado, 28 de agosto de 2010

Morta de sono


Convenhamos: dormir é o gesto mais banal do mundo. Dormem reis, dormem papas, dormem mendigos, bichos, plantas - todos dormem. E quase tudo descansa se é esse o nosso desejo. Dormir é mais comum que morrer e nascer, princípio de economia inquestionável do corpo e da alma das coisas. No entanto, todos hão de concordar comigo, dormir é também coisa mais estranha do planeta para quem vê com os olhos livres, com a perplexidade dos ascetas. É só ficar de cara, absolutamente de cara.

Foi a conclusão que chegamos eu e minha irmã tomando um café arregado e filosofando de boca cheia. A conversa toda começou no mesmo quarto. Numa noite qualquer ela se levanta da cama, sonâmbula, se enrola na coberta e anda em direção a porta. Como a luz do corredor estava acesa e a porta entreaberta, não foi difícil ver sua cara cheia de Minâncora na moldura dos cabelos escuros e escorridos meio grudados na pomada. - Aonde essa guria vai, caramba? - me perguntei com o esboço de um sorriso no canto da boca, imaginando a tirada de onda de que me valeria no dia seguinte quando então, de camisola comprida e azul, ela pára, absorta e com a expressão perdida de sono, e se diz: - Sim, eu tenho que dormir... E caminha novamente para a cama. Deita-se e retoma o ronco.

Engraçado. Delicadamente engraçado.

Sim, eu tenho que dormir. Todas as noites. Obviamente me obrigo a comer também mas me viro com um pedaço de pão, algumas castanhas no meio da tarde, cafés e copos d'água. Descaso absoluto com as rotinas alimentares e imperativos biológicos.

Mas dormir, ah, dormir é um sonho. Melhor que tomar banho. A cama bem-feita, os lençóis cheirosos, travesseiros de nuvem e a falta de entendimento sobre a vida sem sobre-lençóis. Dependo deles como você deve depender de detalhes para o seu sono, nem que seja uma cadeira dura; olha eu tenho visto tanta coisa... Aliás, conta pra mim: Como é que alguém pode se render ao peso dos olhos e despencar, como se morresse, em qualquer lugar? Com a mesma roupa do dia? Mais: Como se dorme de sapatos sem estar bêbado?

Dormir requer elegância na sua estranheza metafísica. Luz suave, livros de cabeceira. Provocar o sono com literatura para que a passagem se dê delicada. Que os bocejos criem lágrimas que umedeçam a areia a medida que as linhas escorrem, água de clepsidra. Nessa hora, largo o livro resignada, tiro os óculos, apago a luz, me enrosco fetal feito um gato na maciez do sobre-lençol e deslizo para os braços dos deuses.

Mesmo assim, feliz na minha rotina sonífera, se acordo no meio da noite, nunca deixo de pensar o que é que estou fazendo ali, exatamente.

Um comentário:

  1. Um texto ótimo para se começar! Dormir é mesmo uma arte, e, realmente, fazer a passagem da vigília para o sono com literatura é a melhor maneira de adormecer!
    Grande abraço, Francine.

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